Um lobo chamado Vu\u010dko aparece por todos os cantos de Sarajevo, a capital e maior cidade da B\u00f3snia e Herzegovina, na regi\u00e3o europeia dos B\u00e1lc\u00e3s. \u00c9 um desenho simp\u00e1tico que parece querer aliviar a imagem de uma cidade de passado sombrio. O lobinho de cachecol laranja est\u00e1 nas lembrancinhas de viagem, como canecas e chaveiros, e tamb\u00e9m em propagandas em outdoors e grafites pelas ruas. Os muros desenhados est\u00e3o muitas vezes alvejados de balas, resqu\u00edcios sempre presentes dos anos turbulentos. Vu\u010dko \u00e9 como uma mascote n\u00e3o oficial da cidade de 350 mil habitantes, embora tenha sido criado para os Jogos Ol\u00edmpicos de Inverno. Quem chega de paraquedas e descobre sua origem pode imaginar que o evento se aproxima ou acabou de acabar. Mas, como muita coisa em Sarajevo, \u00e9 algo do s\u00e9culo passado. Os jogos aconteceram em 1984, quando a regi\u00e3o ainda fazia parte da Iugosl\u00e1via socialista com outras cinco rep\u00fablicas. O evento trouxe infraestrutura e oportunidade, e a cidade p\u00f4de exibir ao mundo sua cultura e suas tradi\u00e7\u00f5es, boa parte gra\u00e7as \u00e0 diversidade religiosa de sua popula\u00e7\u00e3o, formada por b\u00f3snios mu\u00e7ulmanos, s\u00e9rvios ortodoxos e croatas cat\u00f3licos. A mistura valeu \u00e0 cidade o apelido de “Jerusal\u00e9m da Europa”. Os jogos s\u00e3o at\u00e9 hoje um dos maiores orgulhos de Sarajevo e ganharam at\u00e9 um museu, instalado numa mans\u00e3o constru\u00edda em 1903. Vu\u010dko est\u00e1 bem representado. H\u00e1 tamb\u00e9m exibi\u00e7\u00e3o da tocha ol\u00edmpica, p\u00f4steres feitos por artistas como David Hockney e roupas de atletas e da cerim\u00f4nia de abertura. \u00c9 uma pausa boa para quem veio interessado nas hist\u00f3rias mais famosas e sangrentas da cidade. Oito anos depois da festa ol\u00edmpica, Sarajevo foi sitiada e devastada por quatro anos \u2014a mans\u00e3o do museu foi bombardeada e s\u00f3 reabriu ap\u00f3s reforma em 2020, enquanto outros locais dos jogos seguem abandonados, como a pista de bobsled no monte Trebevi\u0107 e a arena de patina\u00e7\u00e3o. Sarajevo foi tamb\u00e9m palco de outro epis\u00f3dio hist\u00f3rico brutal, mais de cem anos atr\u00e1s, com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, um dos estopins da Primeira Guerra Mundial. A esquina do crime \u00e9 hoje uma das mais visitadas da Europa. Mais de meia d\u00fazia de museus s\u00e3o dedicados a essas trag\u00e9dias, principalmente \u00e0 Guerra da B\u00f3snia e ao cerco de Sarajevo (1992\u20131996), confrontos marcados pela limpeza \u00e9tnica de mu\u00e7ulmanos, estupros e mais de 100 mil mortos. Nos quatro anos do cerco, a popula\u00e7\u00e3o viveu sitiada por for\u00e7as s\u00e9rvias ap\u00f3s a B\u00f3snia declarar sua independ\u00eancia da Iugosl\u00e1via. Instalados nas colinas que cercam a cidade, snipers atiravam em civis, atacados tamb\u00e9m por granadas, tanques e m\u00edsseis lan\u00e7ados por aeronaves. Hist\u00f3rias da rotina de quem tentava sobreviver na cidade est\u00e3o em espa\u00e7os como o Museu do Cerco de Sarajevo e o Museu dos Crimes Contra a Humanidade e Genoc\u00eddio. Ambos trazem explica\u00e7\u00f5es detalhadas dos conflitos, com mapas e maquetes, fotografias e v\u00eddeos, e um tanto de outras curiosidades, como a carta e a camiseta que Arnold Schwarzenegger mandou para a fam\u00edlia de um fisiculturista b\u00f3snio assassinado. No Museu da Inf\u00e2ncia de Guerra, objetos de sobreviventes que eram crian\u00e7as durante o cerco ajudam a contar relatos dif\u00edceis de ouvir. Entre os brinquedos est\u00e1 uma bola de futebol feita de meias, disputada como ouro pelos meninos do bairro. O museu mais visitado fica perto do aeroporto, onde um t\u00fanel de mais de 300 metros foi escavado em 1993 para trazer ajuda humanit\u00e1ria e b\u00e9lica \u00e0 popula\u00e7\u00e3o sitiada. O visitante pode atravessar um pequeno peda\u00e7o do t\u00fanel original, instalado na casa de uma fam\u00edlia que at\u00e9 hoje vive na regi\u00e3o. O museu n\u00e3o aceita cart\u00e3o de cr\u00e9dito, apenas dinheiro, assim como muitos estabelecimentos da capital. Por aqui tampouco existem aplicativos de t\u00e1xi, e muita gente ainda fuma dentro de restaurantes e caf\u00e9s, dando uma sensa\u00e7\u00e3o de que a cidade custa a abra\u00e7ar o s\u00e9culo 21. Para entender a geografia de Sarajevo, encravada num vale estreito tomado de neblina pelas manh\u00e3s, vale visitar um forte abandonado chamado \u017duta Tabija (forte amarelo). A vista panor\u00e2mica \u00e9 muito popular na hora do p\u00f4r do sol. S\u00e3o 15 minutos de subida a p\u00e9 saindo do centrinho tur\u00edstico de Sarajevo, passando por um cemit\u00e9rio mu\u00e7ulmano \u2013a maioria das l\u00e1pides brancas tem data de morte de 1992 a 1995. Al\u00e9m dos museus e das marcas de balas nos pr\u00e9dios antigos, o turista mais atento se depara com muitas outras lembran\u00e7as da guerra, como as manchas vermelhas pintadas nas cal\u00e7adas para marcar locais onde civis foram assassinados. Num parque com grandes an\u00e9is ol\u00edmpicos \u00e0 sua entrada, uma fonte homenageia as 1.600 crian\u00e7as mortas nos anos de cerco, perto de uma escultura de um homem gritando por seu filho, Nermin, ambos v\u00edtimas do massacre de Srebrenica \u2014cidade a 150 km de Sarajevo onde mais de 8.000 mu\u00e7ulmanos foram assassinados em menos de um m\u00eas, o primeiro caso reconhecido de genoc\u00eddio desde a Segunda Guerra Mundial. Para dar outra pausa na barb\u00e1rie, o centrinho tur\u00edstico fica no mercado antigo de Ba\u0161\u010dar\u0161ija, uma regi\u00e3o vibrante com lojinhas e restaurantes. Suas ruas s\u00e3o estreitas de paralelep\u00edpedos, pontuadas por mesquitas. Aqui \u00e9 o lugar para experimentar o caf\u00e9 b\u00f3snio (intenso e curto como o turco) e o ch\u00e1 talep (feito de ra\u00edzes de orqu\u00eddea), e comer muito \u0107evapi (sandu\u00edche de p\u00e3o \u00e1rabe com lingui\u00e7a) e burek (um salgado de massa folhada). A forte influ\u00eancia turca vem dos mais de 400 anos em que a B\u00f3snia pertenceu ao imp\u00e9rio otomano, at\u00e9 ser anexada pela \u00c1ustria-Hungria em 1878. O novo per\u00edodo trouxe moderniza\u00e7\u00e3o ao pa\u00eds, assim como aspectos da cultura europeia. As influ\u00eancias causaram resist\u00eancia, especialmente entre os nacionalistas s\u00e9rvios, arquitetos do assassinato de Francisco Ferdinando, herdeiro do Imp\u00e9rio Austro-H\u00fangaro, em 1914. Ele e sua mulher Sofia seguiam em carro aberto em visita oficial \u00e0 cidade, quando ambos foram mortos a tiros por Gavrilo Princip. A rua fica a poucas quadras do mercado Ba\u0161\u010dar\u0161ija. No local onde o ve\u00edculo foi atingido, h\u00e1 quatro placas no ch\u00e3o para demarcar as rodas. E no local onde o assassino disparou, h\u00e1 duas marcas de sapatos. Multid\u00f5es de turistas passam pela esquina diariamente, e muitos comparam suas pisadas com as de Princip. Um min\u00fasculo museu traz um v\u00eddeo com uma reconstitui\u00e7\u00e3o de gosto duvidoso, manequins vestidos de arquiduque e duquesa, al\u00e9m das cal\u00e7as e bolsa listrada que Princip usava na hora do crime, junto com uma r\u00e9plica da arma. O assassino, que morreu de tuberculose na pris\u00e3o poucos anos depois, est\u00e1 enterrado num cemit\u00e9rio s\u00e9rvio a apenas 2 km de dist\u00e2ncia, numa capela com flores frescas ao lado de outros conspiradores. Para muitos s\u00e9rvios, Princip virou m\u00e1rtir. <\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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