Quatro processos no Supremo Tribunal Federal (STF) d\u00e3o uma amostra de como a esquerda se articula para defender suas posi\u00e7\u00f5es num tema crucial: a educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica de crian\u00e7as e adolescentes. Tramitam na Corte a\u00e7\u00f5es, apresentadas por PT, PSOL, PCdoB e pela Confedera\u00e7\u00e3o Nacional dos Trabalhadores em Educa\u00e7\u00e3o (CNTE) \u2013 que re\u00fane sindicatos de professores \u2013 que buscam derrubar leis do Paran\u00e1, S\u00e3o Paulo e Rio Grande do Sul que institu\u00edram e regulamentaram a implanta\u00e7\u00e3o das escolas c\u00edvico-militares em cada um dos estados.Nesses processos, nada menos que 26 \u00f3rg\u00e3os p\u00fablicos federais, ONGs, associa\u00e7\u00f5es e entidades, incluindo os pr\u00f3prios partidos, se juntaram para atacar o modelo, impulsionado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que conquistou popularidade e apoio entre pais de estudantes, e alcan\u00e7ou, nos \u00faltimos anos, a maioria dos estados.Fam\u00edlias, governadores e prefeitos conservadores aderiram em massa \u00e0s escolas c\u00edvico-militares por serem um raro caso de sucesso na educa\u00e7\u00e3o brasileira e aplacarem um dos maiores problemas atuais da educa\u00e7\u00e3o p\u00fablica e diretamente respons\u00e1vel pelos maus resultados no aprendizado: a indisciplina e a viol\u00eancia no ambiente escolar, especialmente em bairros pobres e de periferia das cidades.Neste ano, o governador de S\u00e3o Paulo, Tarc\u00edsio de Freitas (Republicanos), prop\u00f4s e aprovou, com amplo apoio na Assembleia Legislativa, a lei que regulamenta o funcionamento das escolas c\u00edvico-militares no estado. O Rio Grande do Sul, do governador Eduardo Leite (PSDB), fez o mesmo. E o Paran\u00e1, governado por Carlos Massa Ratinho J\u00fanior (PSD), atualizou sua lei em 2022.As a\u00e7\u00f5es no STF visam derrubar todas essas leis, que se tornaram modelo no pa\u00eds. Se a Corte considerar o modelo inconstitucional, todos os estados ter\u00e3o que acabar com as escolas c\u00edvico-militares; bastaria que os partidos acionassem o tribunal para derrubar cada uma das leis estaduais.Os partidos e ONGs de esquerda receberam apoio do governo Lula, com pareceres da Advocacia-Geral da Uni\u00e3o (AGU) e do Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o (MEC) recheados de cr\u00edticas e apontamentos de supostas inconstitucionalidades, al\u00e9m de manifesta\u00e7\u00f5es tamb\u00e9m contr\u00e1rias de alas progressistas das Defensorias P\u00fablicas e do Minist\u00e9rio P\u00fablico.Nos processos, os \u00fanicos que se manifestaram a favor das leis, at\u00e9 o momento, foram aqueles que as propuseram e aprovaram: Tarc\u00edsio de Freitas, Ratinho Jr., e as Assembleias Legislativas de S\u00e3o Paulo, do Paran\u00e1 e do Rio Grande do Sul. Da sociedade civil, apenas um advogado se manifestou no STF a favor da lei paulista, rebatendo cada um dos argumentos do PT.A discrep\u00e2ncia na mobiliza\u00e7\u00e3o junto \u00e0 Corte \u2013 26 \u00f3rg\u00e3os e entidades contra e apenas 5 a favor, al\u00e9m de um cidad\u00e3o que se manifestou em defesa das escolas c\u00edvico-militares (veja lista no final desta reportagem) \u2013 e a relev\u00e2ncia do tema motivou o ministro Gilmar Mendes, relator das a\u00e7\u00f5es contra a lei de S\u00e3o Paulo, a convocar uma audi\u00eancia p\u00fablica, para que todos os interessados possam discutir a quest\u00e3o oralmente antes do julgamento no plen\u00e1rio do STF pelos ministros. A data prevista para audi\u00eancia \u00e9 22 de outubro e as inscri\u00e7\u00f5es para participar se encerraram em 4 de outubro.Ao convocar a audi\u00eancia, no in\u00edcio de setembro, o ministro afirmou que o objetivo \u00e9 conhecer melhor a evolu\u00e7\u00e3o das escolas militares e c\u00edvico-militares no Brasil; a distin\u00e7\u00e3o pr\u00e1tica entre escolas militares e escolas c\u00edvico-militares; impactos financeiros e or\u00e7ament\u00e1rios na implementa\u00e7\u00e3o de escolas c\u00edvico-militares; a din\u00e2mica pedag\u00f3gica das escolas convencionais, das militares e das c\u00edvico-militares; e repercuss\u00f5es das escolas c\u00edvico-militares na seguran\u00e7a.\u201cA coleta de dados e argumentos tecnicamente qualificados e especializados permitir\u00e1 que esta Corte se debruce com maior seguran\u00e7a sobre os fatos que conformam a aplica\u00e7\u00e3o da norma que cria o programa de escola c\u00edvico-militar, \u00e0 luz dos princ\u00edpios da liberdade de aprendizagem, ensino e pesquisa, do pluralismo de ideias e de concep\u00e7\u00f5es pedag\u00f3gicas, da gest\u00e3o democr\u00e1tica do ensino\u201d, escreveu Gilmar Mendes.O que dizem os que criticam as escolas c\u00edvico-militaresOs partidos, ONGs e \u00f3rg\u00e3os p\u00fablicos contr\u00e1rios \u00e0s escolas c\u00edvico-militares dizem que elas promovem uma \u201cmilitariza\u00e7\u00e3o\u201d do ambiente escolar e, com isso, agridem a liberdade dos estudantes para manifestar suas opini\u00f5es e comportamentos. Argumentam que a cultura militar, nos quais impera a hierarquia e a disciplina, mina a \u201cgest\u00e3o democr\u00e1tica\u201d do ensino, e a \u201cvaloriza\u00e7\u00e3o dos profissionais da educa\u00e7\u00e3o\u201d, dois preceitos previstos na Constitui\u00e7\u00e3o.A cr\u00edtica da esquerda se d\u00e1 por causa do emprego de policiais aposentados nas fun\u00e7\u00f5es de monitoria das escolas e na seguran\u00e7a interna. As leis estaduais n\u00e3o d\u00e3o a eles cargos de professores, que continuam oriundos de concursos p\u00fablicos realizados pelas secretarias de educa\u00e7\u00e3o. Cabe aos monitores militares executar atividades extracurriculares \u2013 que incluem li\u00e7\u00f5es de \u201cCidadania e Civismo\u201d \u2013 bem como a inclus\u00e3o, na rotina dos estudantes, de prestar contin\u00eancia \u00e0 Bandeira e ao Hino Nacional. Outra insatisfa\u00e7\u00e3o se d\u00e1 em rela\u00e7\u00e3o aos uniformes, mais formais e alinhados, al\u00e9m da proibi\u00e7\u00e3o de cortes de cabelo extravagantes e uso de bon\u00e9s e piercing.\u201cA educa\u00e7\u00e3o n\u00e3o se torna libertadora, tampouco emancipat\u00f3ria, restringindo-se \u00e0 prolifera\u00e7\u00e3o do medo e da ang\u00fastia. Cria jovens e adolescentes receosos de impor limites a quem lhe incomoda, subservientes a autoridades autocr\u00e1tica [sic], permeados de inseguran\u00e7as e, por vezes, sem reconhecer a si pr\u00f3prio e o potencial de sua personalidade. Nas palavras de Michel Foucault, temos a\u00ed o \u2018corpo d\u00f3cil\u2019\u201d, diz a a\u00e7\u00e3o do PT. \u201cCrian\u00e7as e adolescentes s\u00e3o submetidos ao julgo [sic] da for\u00e7a policial dentro do ambiente escolar, como o policiamento ostensivo feito por esses policiais nas ruas, sem contar com o ambiente opressivo e t\u00f3xico\u201d, diz outro trecho.\u201cA educa\u00e7\u00e3o civil deve seguir sendo a base estrutural sobre a qual todo o edif\u00edcio republicano brasileiro se erige, de modo que a altera\u00e7\u00e3o dessa estrutura fundamental pode fazer ruir, caso n\u00e3o combatida, a nossa democracia, na medida em que a militariza\u00e7\u00e3o das escolas p\u00fablicas representa verdadeira ant\u00edtese institucional do esp\u00edrito republicano e democr\u00e1tico que alicer\u00e7ou a Constitui\u00e7\u00e3o Federal de 1988\u201d, afirmou o PSOL em suas a\u00e7\u00f5es.Outra contesta\u00e7\u00e3o \u00e9 de ordem financeira: os partidos e sindicatos de professores dizem que, em S\u00e3o Paulo, os policiais monitores podem receber de gratifica\u00e7\u00e3o, al\u00e9m do sal\u00e1rio de aposentadoria, at\u00e9 R$ 6 mil por m\u00eas, mais do que um professor. O penduricalho \u00e9 pago pela Secretaria de Educa\u00e7\u00e3o, e n\u00e3o pela pasta da Seguran\u00e7a P\u00fablica. Argumenta-se tamb\u00e9m que policiais n\u00e3o t\u00eam, na Lei de Diretrizes e Bases da Educa\u00e7\u00e3o, nem na Constitui\u00e7\u00e3o, qualquer fun\u00e7\u00e3o prevista na educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica comum.\u00c0 \u00e9poca em que o governo Lula anunciou o encerramento do programa federal das escolas c\u00edvico-militares, a Secretaria de Educa\u00e7\u00e3o B\u00e1sica do Minist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3o (MEC) divulgou uma nota t\u00e9cnica com as alega\u00e7\u00f5es para o encerramento da medida. Apontou o “desvio de finalidade das atividades das for\u00e7as armadas”, e destacou que a “execu\u00e7\u00e3o or\u00e7ament\u00e1ria dos recursos de assist\u00eancia financeira destinados \u00e0s escolas do programa” foi insuficiente entre 2020 e 2022. O \u00f3rg\u00e3o tamb\u00e9m criticou o argumento de que as escolas c\u00edvico-militares poderiam ajudar a solucionar quest\u00f5es sociais das localidades em que est\u00e3o inseridos, j\u00e1 que as unidades apresentam caracter\u00edsticas diferentes uma das outras.O que dizem os que defendem as escolas c\u00edvico-militaresEm defesa das escolas c\u00edvico-militares, Tarc\u00edsio de Freitas, Ratinho J\u00fanior, e as assembleias estaduais argumentam que os estados e munic\u00edpios receberam da Constitui\u00e7\u00e3o compet\u00eancia para gerir as escolas de ensino m\u00e9dio e fundamental. Argumentam ainda que a gest\u00e3o, a dire\u00e7\u00e3o das escolas, o projeto pedag\u00f3gico e a sele\u00e7\u00e3o dos monitores continuam a cargo das secretarias de educa\u00e7\u00e3o, conforme as leis estaduais aprovadas.Os professores, protagonistas no ensino, s\u00e3o civis concursados. E a escola s\u00f3 se torna c\u00edvico-militar caso haja aprova\u00e7\u00e3o, em consulta p\u00fablica, pela maioria da comunidade escolar.Em defesa das escolas c\u00edvico-militares, Tarc\u00edsio de Freitas citou estudo da Escola Nacional de Administra\u00e7\u00e3o P\u00fablica (Enap), segundo o qual o modelo \u201creduz a distor\u00e7\u00e3o idade-s\u00e9rie em 10% e aumenta o desempenho dos alunos nas notas padronizadas em 15,25 e 11,61 pontos nas provas de Matem\u00e1tica e Portugu\u00eas\u201d.\u201cO modelo de Escola C\u00edvico-Militar n\u00e3o pretende \u2013 ao rev\u00e9s do afirmado na inicial \u2013 substituir o modelo tradicional de escola p\u00fablica, mas complement\u00e1-lo\u201d, escreveu o governador de S\u00e3o Paulo na manifesta\u00e7\u00e3o enviada ao STF. \u201cO papel do monitor policial militar \u00e9 delimitado e n\u00e3o se confunde com os pap\u00e9is desempenhados pelos profissionais da educa\u00e7\u00e3o\u201d, afirmou ainda.Ratinho J\u00fanior destacou que o Paran\u00e1 \u00e9 o estado com mais escolas c\u00edvico-militares no pa\u00eds, com 312 unidades. Tamb\u00e9m refutou \u201cmilitariza\u00e7\u00e3o\u201d dos alunos ou interfer\u00eancia dos policiais nos planos de ensino das escolas, que continuam condizentes com as diretrizes nacionais.\u201cO Programa das Escolas C\u00edvico-Militares n\u00e3o tem vi\u00e9s antidemocr\u00e1tico. Longe disso: busca promover e concretizar diversos valores indispens\u00e1veis para a vida em sociedade e para a constru\u00e7\u00e3o de uma comunidade escolar tolerante e plural\u201d, escreveu na manifesta\u00e7\u00e3o ao STF.\u201cPor n\u00e3o se tratar de militariza\u00e7\u00e3o, nem de incentivo \u00e0 carreira militar, n\u00e3o h\u00e1 como dizer que o modelo implique viola\u00e7\u00e3o ao direito de escusa de consci\u00eancia ou \u00e0 liberdade das crian\u00e7as e adolescentes. Acrescente-se, ainda, que a maioria das escolas p\u00fablicas permanece sob o regime tradicional, resguardando-se a escolha de pais, respons\u00e1veis e estudantes que, eventualmente, discordem do modelo\u201d, afirmou o governador do Paran\u00e1.Institui\u00e7\u00f5es e entidades que pedem o fim das escolas c\u00edvico-militares no STF:PTPSOLPCdoBDefensoria P\u00fablica de SPONG Centro Santo DiasIBCCrimAdvocavia-Geral da Uni\u00e3o (AGU), do governo LulaMinist\u00e9rio da Educa\u00e7\u00e3oUbesSindicato de especialistas da educa\u00e7\u00e3oInstituto Vladimir HerzogColetivo MP TransformadorA\u00e7\u00e3o EducativaAssocia\u00e7\u00e3o Nacional de P\u00f3s-Gradua\u00e7\u00e3o e Pesquisa em Educa\u00e7\u00e3o (Anped)Associa\u00e7\u00e3o Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educa\u00e7\u00e3o (Fineduca)Centro de Estudos Educa\u00e7\u00e3o e Sociedade (Cedes)Instituto Campanha Nacional pelo Direito \u00e0 Educa\u00e7\u00e3oRede Nacional de Pesquisa sobre Militariza\u00e7\u00e3o da Educa\u00e7\u00e3o (Repme)Cl\u00ednica de Pol\u00edticas P\u00fablicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Abc (CPPDH\/UFABC)Associa\u00e7\u00e3o Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de L\u00e9sbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transg\u00eaneros e Intersexuais (Anajudh-Lgbti)Minist\u00e9rio P\u00fablico do Paran\u00e1Defensoria P\u00fablica do Paran\u00e1Sindicato dos Trabalhadores em Educa\u00e7\u00e3o P\u00fablica do Paran\u00e1Associa\u00e7\u00e3o Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)Defensoria P\u00fablica da Uni\u00e3o (DPU)Confedera\u00e7\u00e3o Nacional dos Trabalhadores em Educa\u00e7\u00e3o (CNTE)Quem defendeu a continuidade das escolas c\u00edvico-militares no STF:Governador Tarc\u00edsio de FreitasAssembleia Legislativa de S\u00e3o Paulo (Alesp)Governador Ratinho J\u00faniorAssembleia Legislativa do Paran\u00e1Assembleia Legislativa do Rio Grande do SulTiago Souza Santos, cidad\u00e3o e advogadoCorre\u00e7\u00e3oA primeira vers\u00e3o desta reportagem informava que 27 \u00f3rg\u00e3os p\u00fablicos federais, ONGs, associa\u00e7\u00f5es e entidades estavam envolvidas nas a\u00e7\u00f5es contra as escolas c\u00edvico-militares. Na verdade, s\u00e3o 26, conforme lista publicada ao final do texto.Corrigido em 14\/10\/2024 \u00e0s 18:02<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"
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